Tribunal da Relação do Porto
17.06.2004
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
A.......................... intentou a presente acção ordinária contra
B……......;
C.............. - Sociedade de .................., S.A.; D........... - ........, S.A.,
pedindo a condenação da 3ª Ré no pagamento da indemnização de 350.000$00, pela violação de obrigações a que, no âmbito do contrato de depósito, estava adstrita na qualidade de depositária; e na restituição da quantia de 17.784$00, paga pelo A. pela substituição de peças da ponteira da direcção, em virtude do seu caracter abusivo e contrário à sua vontade; e a condenação das Rés no pagamento dos danos causados quer pelos defeitos do produto, a título de responsabilidade objectiva do produtor, quer pela sua conduta ilícita, por violação do n.º 1 do art. 5º do Regulamento da CE n.º 1475/95, da Comissão, de 28.6.1995, nos seguintes termos:
a) 1.111.448$00 de danos patrimoniais, a título de despesas;
b) 2.000.000$00 de danos não patrimoniais.
Alegou, resumidamente, ser locatário e legítimo detentor do veículo AUDI A6 Allroad, modelo 2.5 TDI, matrícula ..-..-RB, que foi adquirido novo pela locadora E............ - .........., S.A. a F.........., Lda, no dia 24.1.2001.
Em Março de 2001 o A. sentiu umas vibrações anormais com som metálico no veículo e, porque tencionava deslocar-se a Lisboa, levou-o à 3ª Ré, à qual solicitou que o vistoriasse. Esta assegurou-lhe, depois de o ter vistoriado, que nada de anormal se passava.
No dia 14 de Março o A. foi a Lisboa e aí, quando transitava a cerca de 30/40 km/hora, sentiu uns sacões seguidos de uma guinada para a direita, raspando com o pára-lamas no passeio direito, do qual apenas resultou um ligeiro arranhão. Tentou arrancar, mas o veículo voltou a vibrar, imobilizando-se.
Reparou, então, o A. que a roda dianteira direita se encontrava virada para a direita, desalinhada das demais.
O veículo acabou por ser rebocada para as oficinas da 3.ª Ré, onde dá entrada no dia 16. Nesse dia, o A. enviou um fax à 3.ª Ré, solicitando que o veículo não sofresse qualquer reparação ou intervenção sem a sua presença, pedindo que o avisassem para o efeito, não tendo recebido resposta.
No dia 19 deslocou-se de novo às instalações da 3.ª Ré, sendo informado de que a ponteira da direcção se encontrava partida. No dia seguinte recebeu um fax de um empregado da 3.ª Ré, dando-lhe conta de que os danos tinham sido originados por uma pancada, pelo que os custos da reparação eram por conta do A.
Como as Rés declinassem toda e qualquer responsabilidade no ocorrido, o A. pediu, ao Instituto da Soldadura e Qualidade que disponibilizasse um técnico para examinar o veículo, o que foi aceite pela 2.ª e 3.ª Ré. Mas quando se dirigiu às instalações da 3.ª Ré acompanhado do dito técnico, o A. constatou que o veículo tinha sido desmontado, sem sua autorização, e a peça de ponteira da direcção tinha sido mudada.
O A. retirou o veículo das instalações da Ré e entregou-o noutro concessionário, em Vigo. Foi, no entanto, obrigado a pagar à 3.ª Ré o custo da reparação abusiva da peça.
A reparação integral do veículo ascendeu a 356.619$00; e o A. viu-se obrigado a prorrogar o contrato de locação de outro veículo por mais três meses e que utilizou durante o período em que se viu privado do Audi.
Por via do defeito de fabrico apontado, o A. teve de pagar ao ISQ 76.050$00; 17.784$00 à 3.ª Ré, pela substituição abusiva da peça; 36.779$00 pelo reboque para Vigo; 356.619$00 pela reparação feita em Vigo; 642.000$00 pelas rendas decorrentes da prorrogação do contrato de locação de veículo para substituir o Audi. Viu-se, ainda privado de utilizar as comodidades do Audi e a eficácia sócio-económica da sua utilização, teve aborrecimentos e incomodidades.
A causa destes danos decorre do defeito de origem do veículo e da recusa das Rés em prestar assistência e a garantia devida.
A 3.ª Ré violou o contrato de depósito celebrado com o A., na medida em alterou o objecto depositado sem autorização do depositante. Quanto à 1.ª e 2.ª Ré, a sua responsabilidade solidária decorre de a primeira ser a fabricante do veículo e a segunda sua representante em Portugal. Ora, a 1.ª reconheceu a existência de defeitos em alguns modelos por si fabricados, com características semelhantes ao em causa, nas barras de direcção.
O DL 383/89 transpôs para a ordem interna a Directiva n.º 85/374/CEE, do Conselho que, em matéria de responsabilidade por produtos defeituosos, consagrou a responsabilidade objectiva do produtor. Ao rejeitarem a sua responsabilidade, a 1.ª e 2.ª Ré violaram o art. 5.º do Regulamento CE n.º 1475/95, da Comissão, de 28.6.1995, sendo que a rejeição da garantia, para além de configurar uma clara violação das obrigações a que as Rés (1.ª e 2.ª) estão adstritas, pode integrar actuação discriminatória contra o A., por ter adquirido o veículo fora dos concessionários abrangidos pelo "território contratual", no caso a outro concessionário do mercado comum.
Argumentou, com efeito, a 2.8 Ré, que o veículo não foi comercializado por si.
A 3.ª Ré contestou, dizendo que corrigiu uma vibração de som metálico, correspondendo a uma correcção numa chapa protectora do disco, que nada tem a ver com a direcção, tendo o veículo ficado em perfeitas condições.
Os outros defeitos alegados pelo A. devem-se a uma pancada dada por ele na viatura, tendo o veículo ficado sem poder circular, porque lhe faltava uma parte da ponteira de direcção, encontrando-se a parte roscada final dessa ponteira torcida.
Ao fim da tarde do dia 16.3 o A. compareceu na oficina da Ré e autorizou a intervenção para se verificar o que o veículo tinha, como autorizou, para que o veículo pudesse circular na oficina, que fosse montada a parte da ponteira que tinha desaparecido.
Por solicitação do A. marcou-se o dia 10.4.2001 para se proceder à desmontagem das peças danificadas e enviá-las parta a Alemanha, para a sede da 1.ª Ré. Mas o A., contrariando o acordado, levantou a viatura e disse que ia mandar analisar as peças no ISQ, rebocando-a.
Por outro lado, havendo mais concessionários no Porto, o A. não tinha necessidade de rebocar a viatura para Vigo, sendo que este concessionário, se houvesse defeito de fabrico, teria efectuado a reparação em garantia, o que não fez.
A 2.ª Ré contestou, começando por invocar a sua ilegitimidade. Para tanto disse que apenas mantém com a Audi, fabricante da marca, um contrato de importação que não lhe confere quaisquer poderes de representação, tendo o fabricante optado, no caso português, por um sistema de distribuição indirecta: os automóveis e peças são comprados pelo importador, a ora Ré, e por esta revendidos a concessionários, sendo a D................. um deles.
Não só os concessionários contratam livremente com os clientes a venda dos produtos e a prestação dos serviços, como as garantias do produto são dadas directamente pela fábrica. O processamento da garantia é feito da seguinte forma: o concessionário efectua a reparação em garantia e prepara o competente processo; seguidamente, introdu-lo no sistema informático; a C.......... limita-se a certificar que o concessionário faz parte da sua rede de concessionários, sem tomar conhecimento da reclamação em garantia, seguindo o processo para o fabricante alemão, a B..........., sendo esta que reembolsa o concessionário dos custos da reparação em garantia, enviando-os à C........., com indicação de que são para ser creditados ao
concessionário em causa.
Acresce que a C.......... nem sequer importou o veículo em causa, que o A. afirma ter sido adquirido à F........., que não pertence à rede de concessionários Audi, tendo o veículo sido vendido por um concessionário sito na Alemanha, de acordo com as indicações do carimbo constante do doc. n.º 1 junto com a p.i.
Impugnou, ainda, os factos articulados pelo desconhecimento, ou por não corresponderem à realidade.
O A. replicou, sustentando a sua alegação inicial e a legitimidade da 2.ª Ré, afirmando, ainda, que o veículo é propriedade de E.......... .
Finalmente, contestou a 1.ª Ré, defendendo-se por excepção e por impugnaçao.
A defesa por excepção foi dividida em duas vertentes: 1- a ineptidão da p.í., por contradição de causas de pedír; 2- a ilegitimidade do A; Relativamente à primeira, afirmou que o A. invoca a deficiência de fabrico do carro, mas, ao mesmo tempo, diz que a 3.ª Ré, com a sua intervenção no veículo sem para tanto estar autorizada, frustrou a prova do defeito originário do produto, porquanto não tem a certeza de que a peça deixada na mala do carro após essa intervenção ser a proveniente dele. E assim, não pode obter o reconhecimento do seu direito.
Quanto à ilegitimidade disse que não se tendo demonstrado a propriedade do veículo, porque do contrato que constitui o doc. n.º 1-A junto com a petição consta que o mesmo "poderá não ser propriedade da locadora", nem que o A. é locatário dele, porque o dito contrato de aluguer não contém qualquer assinatura, não resulta segura a legitimidade do A., pelo que deverá, para assegurar a sua legitimidade, comprovar que a E....... é a proprietária e que ele é o locatário.
No que concerne à impugnação disse que se não demonstra qualquer defeito de fabrico, antes todos referindo, incluindo o concessionário de Vigo, que a reparação foi determinada por uma pancada. Além disso, em veículos da mesma série do que está em causa, não foi detectada qualquer deficiência de fabrico.
O A. replicou, sustentando a sua legitimidade na qualidade de locatário e, ainda, de promitente comprador do veículo; bem como a inexistência de ineptidão da p.i.. Juntou o livrete e o título de registo de propriedade da viatura, do qual consta que o proprietário é E..............., S.A.
A 1.ª Ré insurgiu-se contra a réplica, na medida em que, segundo entende, extravasa a matéria da defesa por excepção, propondo que os art.s 26º a 82º dessa articulado sejam considerados não escritos. Tomou também posição sobre os documentos juntos pelo A. com o articulado em questão.
O A. pronunciou-se pelo indeferimento da pretensão da 1ª Ré.
Teve lugar audiência preliminar e foi proferido despacho saneador que julgou o A. parte ilegítima, por não ser dono da viatura, mas mero detentor, na qualidade de locatário, sendo que os vícios das coisas vendidas apenas podem ser invocados pelo comprador, absolvendo, em consequência, as Rés da instância.
O A. recorreu, formulando as seguintes conclusões:
1.ª. “A legitimidade das partes deve ser referida à relação jurídica objecto do pleito e determina-se averiguando quais os fundamentos da acção e qual a posição das partes relativamente a esses fundamentos” - ac. STJ de 15.1.87, Bol. 363.0-452.
2.ª. Os pedidos deduzidos pelo agravante consistem no custo de uma perícia por si ordenada; na restituição de quantias pagas a uma das Rés por serviços prestados; no custo do reboque do veículo para outra oficina; no custo de uma peça do veículo desaparecida, enquanto uma das Rés o detinha no âmbito de um contrato de depósito e respectiva aplicação; nos danos sofridos no veículo; no montante relativo ao dano da privação do uso; e nos danos não patrimoniais sofridos pelo A.
3.ª. O agravante estribou tais pedidos numa causa de pedir - o facto ou acto jurídico complexo e concreto do qual nasce o efeito jurídico pretendido, isto é, o acto ou facto jurídico onde assenta a pretensão deduzida em juízo, o princípio gerador do direito, o seu fundamento - complexa, constituída pelos factos alegados, designadamente, nos art.s 1.º, 2.º,68.º,4.º,5.º,7.º a 22.º,27.º,28.º,52.º,53.º,23.º e 35.º a 49.º da p.i.
4.ª. Tais factos alegados pelo agravante e que constituem a causa de pedir são, designadamente, e além do mais, que o veículo em causa foi, devido a deficiências de funcionamento, deficiente - “assistido” nas oficinas da 3.ª Ré, não obstante - e a isso deveria ter obstado se tivesse sido devidamente efectuado - sofreu um acidente do qual resultaram danos; a mesma Ré desmontou o veículo e efectuou nele reparações não só não autorizadas como expressamente proibidas; todas as Rés, conluiadas, recusaram, ilegalmente, prestar assistência ao agravante; por isso - por tais acções e omissões - o agravante sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais.
5.ª. Não é, pois, correcto o entendimento vertido. no saneador de que a causa de pedir na presente acção se reconduz aos danos sofridos em consequência de um defeito de fabrico de uma peça do veículo; verificando-se, em vez disso, uma causa de pedir complexa.
6.ª. Assim, atenta a causa de pedir e o pedido é manifesto que, à luz do disposto no art. 26.º do CPCivil, o agravante tem interesse directo em demandar e as agravadas interesse directo em contradizer, uma vez que os direitos por ele invocados lhe pertencem, tendo-se constituído na sua esfera jurídica em consequência das acções e omissões imputadas às Rés e não à locadora.
7.ª. Pois que foi o agravante quem contratou com a 3.ª Ré a assistência ao veículo em causa - e que ou não foi efectuada ou foi-o defeituosamente -, quem nas instalações dela depois o depositou - tendo esta Ré violado o contratado - e foi o mesmo quem sofreu danos decorrentes da prática concertada e conluiada das Rés que recusaram prestar assistência ao veículo.
8.ª. Assim, decorre do exposto que o saneador fez incorrecta aplicação do disposto no art. 26.º do CPCivil, devendo ser revogado e ordenando-se o prosseguimento da lide, o que expressamente se requer .
Sem prescindir ,
9.º. O contrato de aluguer de longa duração é um contrato atípico, indirecto, sendo que, como ensina P. Pais de Vasconcelos, «Qualificar este contrato simplesmente como contrato de aluguer de automóveis ou como contrato de venda a prestações com reserva de propriedade resulta, em qualquer dos casos, no desrespeito da vontade contratual. A concorrência do contrato de venda a prestações com reserva de propriedade com o contrato de aluguer de longa duração para satisfação do mesmo fim das partes não tem nada de reprovável ou de nocivo. Pelo contrário, resulta num enriquecimento importante da liberdade contratual, da capacidade de escolha pelas partes dos meios jurídicos para satisfação dos seus interesses, e num aumento dos meios jurídicos disponíveis no comércio” - no mesmo sentido, ac. desta Relação de 19.4.99, CJ XXIV, 2,204 e ss.
10.ª. Atento o princípio da liberdade contratual consagrado no art. 405.º do CCivil, para a solução de qualquer litígio que nos surja sobre o contrato de aluguer de longa duração, há que recorrer às cláusulas do contrato celebrado em tudo que não seja contrário a disposições legais imperativas e, só e apenas na sua ausência, ao contrato de locação previsto nos art.s l022.º e ss. do, CCivil.
11.ª. Do disposto no contrato de aluguer de longa duração junto aos autos ressaltam, a este propósito, as obrigações estabelecidas sob a epígrafe “Obrigações do Cliente”, nas alíneas j) e k), segundo as quais o locatário deve “diligenciar no sentido de serem atempadamente efectuadas as reparações e substituições de peças tomadas necessárias pela deterioração do veículo” - e l) “pagar todas as despesas relativas aos serviços e peças, referidas nas alíneas j) e k) da presente cláusula” - m) e n).
12.ª. Atento o pedido deduzido nos autos e sempre sem prescindir do supra referido a propósito da legitimidade do A - agravante face ao pedido deduzido e respectiva causa de pedir, mesmo seguindo na esteira do raciocínio do M.mo Juiz a quo, temos de concluir pela legitimidade do agravante face aos citados termos do contrato que celebrou com a locadora E........... e não obstante a eficácia relativa inter partes de tal contrato.
13.ª. Com efeito, o agravante cumpriu o contratualmente estipulado com a locadora ao providenciar no sentido da reparação do veículo que lhe estava locado, sendo que, porém, ao cumprir a sua obrigação contratual, deparou com uma situação estranha e exógena àquela relação contratual previamente estabelecida com a locadora: os factos e omissões praticados pelas Rés que perturbaram o gozo da coisa e em consequência dos quais o agravante sofreu danos que são próprios.
14.ª. Tais danos, produzidos na esfera jurídica do agravante, são consequência directa da actuação ilícita das Rés (dos factos e omissões que aquele alegou terem por elas sido praticados em violação do contratado com ele e da lei) e não em consequência directa e imediata do vício da peça do veículo.
15.ª. Decorre, assim, do exposto que assiste ao agravante o direito a peticionar os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, ainda que seja mero detentor do veículo e não seu possuidor, pois que tal qualidade - ou outra - é absolutamente despicienda face à causa de pedir e ao pedido, estando em causa danos próprios daquele.
16.ª. E mesmo que não fosse exactamente assim, sempre o agravante seria, de todo o modo, parte legítima, pois não obstante o contrato de aluguer de longa duração ter eficácia inter partes, o certo é que inexiste norma tipificada disciplinadora do contrato, atípico, do aluguer de longa duração, que subtraia ao locatário o direito de peticionar as quantias que o agravante peticiona nos autos e uma vez que, ao contrário do entendimento vertido no saneador, não está em causa o exercício de direitos da titularidade do possuidor (ou do proprietário).
17.ª. Assim, deve o saneador ser revogado, por incorrecta interpretação e aplicação do disposto no art. 26.º do CPCivil e, consequentemente, ser ordenado o prosseguimento dos autos.
A 1.ª Ré contra-alegou, pedindo a confirmação do despacho.
Este foi sustentado pelo Sr. Juiz.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir .
Os factos com interesse são os supra referidos e decorrentes dos articulados das partes, sumariamente transcritos.
No recurso colocam-se várias questões, todas elas gravitando à volta da legitimidade do A. .
Na sua essência, o tema a decidir prende-se com a qualidade invocada pelo A. para demandar as Rés, mormente, a 1.ª e 2.ª, aquela a produtora do veículo e esta, na tese do A., a sua representante.
Do documento n.º 1-A, junto pelo A. com a p.i. (que, aliás, se encontra incompleto e se não mostra assinado, da mesma forma que não está assinado o contrato com o mesmo n.º, mas convertido nos seus valores para euros e junto a fls. 480 e ss., nem os contratos-promessa de fls. 484 e 485), consta que este, como locatário, recebeu de aluguer de E............ S.A., o veículo identificado nos autos, tendo o contrato tido início em 25.1.2001.
Esta circunstância do início do contrato afigura-se-nos de candente importância para aferir da bondade da decisão impugnada.
É que o DL 67/2003, de 8.4, conforme resulta do seu art. 1.º/1, procedeu à transposição para o direito interno da Directiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, com vista a assegurar a protecção dos interesses dos consumidores, tal como definidos no n.º 1 do art. 2.º da Lei 24/96, de 31.7.
Logo o n.º 2 do mesmo preceito, esclarecendo a que se aplica o diploma, refere sê-lo, com as necessárias adaptações, aos contratos de fornecimento de bens de consumo a fabricar ou a produzir e de locação de bens de consumo.
E o art. 6.º/1 consagra a possibilidade de o consumidor, sem prejuízo dos direitos que lhe assistam perante o vendedor, optar por exigir do produtor, à escolha deste, a reparação ou substituição da coisa defeituosa. Estabelece-se, ainda, no n.º 3, a responsabilidade solidária com o produtor do representante dele na zona de domicílio do consumidor e perante este.
Segundo João Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo, 9, trata-se de inovação bastante significativa, consistente na consagração da responsabilidade directa do produtor perante o consumidor, pela reparação ou substituição de coisa defeituosa. Solução resultante de se ter estendido ao domínio da qualidade a responsabilidade do produtor pelos defeitos de segurança, já hoje prevista no DL 383/89, de 6.11.
Curiosamente, conforme refere a fls. 53, a lei nacional foi ainda mais longe do que a Directiva, na medida em que inclui, como vimos, no seu texto, a locação de bens de consumo, da qual é exemplo o aluguer de longa duração, nomeadamente de automóveis, que se encontra fora das fronteiras daquela, que se reporta à compra e venda.
A acção directa contra o produtor já se vinha reclamando de jure condendo e foi agora introduzi da na lei - ibid. 98 a 100.
Seguindo a mesma orientação, a Lei 24/96, de 31.7 (Lei de Defesa dos Consumidores), foi alterada pelo art. 13.º do DL 67/2003, por forma a adaptar a este diploma e à Directiva que esteve na sua origem, quer o direito à qualidade dos bens e serviços (art. 4.º), quer o direito à reparação dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos.
Assim, à luz deste diploma, o A. poderia, efectivamente, demandar o produtor, que não é outro senão o fabricante (art. 6.º/4) e o seu representante.
Acontece que o diploma em causa apenas entrou em vigor, nos termos do seu art. 14.º, no dia seguinte ao da sua publicação (foi consagrada no n.º 2 da norma uma vacatio mais alargada para situação que nos não interessa), que foi 8/4/2003.
O que significa que não é aplicável ao caso, atento o princípio geral da aplicação das leis no tempo, consagrado no art. 12.º do CCivil, segundo o qual a lei só dispõe para o futuro.
Faltando a acção directa, potenciadora do princípio da economia processual (“diagonal privity”), fica-nos a “vertical privity”, inerente ao
princípio da relatividade dos contratos por força do qual o consumidor age contra o seu vendedor, o qual exerce acção de regresso contra o vendedor precedente e assim por diante - ibid. 103.
No caso em análise a situação é ainda mais específica, visto que o A. é locatário do bem de consumo.
O contrato de locação tem o seu regime estrutural fixado no CCivil art. 1022.º e ss.
O locador vincula-se a proporcionar ao locatárió o gozo temporário de uma coisa mediante retribuição, do que decorrem duas obrigações principais, de acordo com o art. 1031.º: a entrega da coisa; e assegurar o gozo dela para os fins a que a mesma se destina.
Mas a coisa pode sofrer de vícios materiais ou vícios jurídicos, cuja disciplina se encontra nos art.s 1032.º e 1034.º, respectivamente.
Os primeiros são tratados sob a égide do não cumprimento (art. 1032.º), pelo que é inequívoco que o locatário tem direito, quando a coisa locada apresente defeitos impeditivos da sua utilização, à sua eliminação ou reparação, na medida do exacto cumprimento da prestação devida, tendo mesmo a possibilidade de ele próprio fazer reparações extrajudicialmente, com direito ao reembolso (v.g., mediante compensação com as rendas vencidas) das despesas, em caso de urgência que se não compadeça com as delongas do procedimento judicial (art. 1036.º) - João Calvão da Silva, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, 90 a 93.
Assim, pois, como se refere no saneador, a responsabilidade deve ser pedida ao locador e não ao produtor (e seu representante).
Porque, como vimos, a action directe, reconhecida embora noutros países, não o era no direito português, nem sequer pela jurisprudência ibid. 165.
Mas será que a responsabilidade da 1.ª e 2.ª Ré se pode enquadrar na Directiva 85/374/CEE e no DL 383/89, a que alude o apelante ?
Quer a Directiva quer o DL consagram uma responsabilidade objectiva do produtor pelos danos causados por defeitos dos produtos que põe em circulação, definindo o defeito como falta de segurança legitimamente esperada, partindo da existência de uma obrigação de segurança a cargo do fabricante em prol da protecção de qualquer pessoa vítima do produto defeituoso circulante do mercado.
Refere o autor citado, na obra mencionada, pág. 176, que não se trata de uma obrigação de segurança relativa, de natureza contratual, para proteger tão-somente o comprador do produto, visto que “são ressarcíveis os danos resultantes de morte ou lesão pessoal” - toda e qualquer pessoa, profissional ou consumidor, contratante ou terceiro - “e os danos em coisa diversa do produto defeituoso, desde que seja normalmente destinada ao uso ou consumo privado e lesado lhe tinha dado principalmente este destino” (art. 8.º do DL 383/89).
Por conseguinte, trata-se, aqui, da segurança pessoal, do respeito pela vida, pela integridade fisico-psíquica e pela, saúde de toda e qualquer pessoa, vistos à luz dos direitos do homem.
«Daí a unificação das responsabilidades contratual e extracontratual, com superação desta clássica summa divisio, ao regular-se a responsabilidade, tout court, do produtor, qualquer que seja a qualidade (contratante ou terceiro) da vítima, vista a obrigação absoluta (não relativa) de não atentar contra a pessoa humana, contra a segurança das pessoas - alterum non laedere -, não comercializando produtos que não ofereçam a segurança com que legitimamente se pode contar (art. 4.º do DL 383/89».
Produto, de acordo com o art. 3.º do DL 383/89 é qualquer coisa móvel, ainda que incorporada noutra coisa móvel ou imóvel.
Calvão da Silva, o.c., 181, afirma que esta noção de produto é importantíssima no sector da produção de veículos, pois responsabiliza em termos objectivos não só o fabricante final do produto acabado (a Fiat, a Peugeot, a Mercedes, etc.), mas também o produtor de uma parte componente, nomeadamente, do sistema de travagem, do motor, sem exclusão da responsabilidade do detentor do veículo nos termos do art. 503.º ess. Do CCivil.
Como os produtos são coisas móveis, independentemente de se tratar de bens de consumo instantâneo ou duradouro, ou bens de produção, também ditos bens de investimento ou bens instrumentais, está em causa a protecção da pessoa (quem quer que seja - art. 8.º do DL 383/89) e não apenas o consumidor, não profissional.
Chegamos, pois, à distinção que importa fazer entre ambas as Directivas e diplomas que as transpuseram para o direito interno: nestes, o que está em causa, é uma noção de defeito da qual decorre uma falta de segurança legitimamente esperada do produto; naqueles, a falta de conformidade ou qualidade geradora de inaptidão ou inidoneidade do produto para a realização do fim a que se destina.
A falta de segurança e a falta de conformidade ou idoneidade do produto para o fim a que se destina não se confundem, sendo que a products liability se caracteriza por ser uma responsabilidade por falta de segurança dos produtos, enquanto a clássica garantia por vícios se traduz na responsabilidade do vendedor por falta de conformidade ou qualidade das coisas - ibid. 184-185.
O regime da qualidade ou conformidade jurídica e material da coisa com o contrato encontra a sua sede na garantia edilícia (art.s 905.º e ss. e 913.º e ss.) e responsabilidade contratual, e é objecto da Directiva 1999/44/CE apenas quanto à falta de conformidade material. Tem directamente em vista os vícios intrínsecos, estruturais e funcionais da coisa adquirida - defeitos que a tornem imprópria, por falta de qualidades, para o seu destino normal - e os danos desses defeitos lesivos do interesse na prestação, danos na própria coisa viciada, danos (directos) do vício em si ou danos do não cumprimento perfeito, em ordem à salvaguarda da equivalência das prestações, através dos direitos primários da reparação ou substituição da coisa e da redução do preço ou resolução do contrato.
Ao passo que a Directiva 85/374/CEE e o DL 383/89 e a Directiva 92/59/CE e o DL 311/95 se reportam à segurança: os produtos comercializados devem ser seguros, não perigosos, para não atentarem contra a vida, a saúde e a segurança das pessoas no seu uso normal ou razoavelmente previsível. Tratam, exclusivamente, da prevenção e ressarcimento dos danos causados por produtos perigosos ou não seguros às pessoas, consumidores ou profissionais, atingidas na sua vida, saúde ou integridade física, psíquica e mental- ibid. 211-212.
O autor que vimos citando pergunta-se até quando se vai manter o tratamento separado da conformidade e da segurança, por as duas questões se encontrarem já suficientemente maduras para poderem ser objecto da construção de um sistema unitário de tutela - 212.
Com efeito, as duas soluções entrecruzam-se, porque se não pode ter por conforme ao contrato um produto “defeituoso” ou “perigoso”, devendo considerar-se a segurança um aspecto da qualidade e idoneidade, e a ineficácia ou inaptidão um defeito de segurança, se acarretar danos pessoais evitáveis.
Mas a solução proposta só relevará de jure condendo.
No caso em análise, o apelante suscita, manifestamente, a ineficácia ou inaptidão do produto (no que tange à 1.ª e 2.ª Ré) - cfr. art.s 35.º e 50.º . da p.i; -, pelo que não é parte legítima ou, se quisermos, as demandadas não são dotadas de legitimidade passiva na medida em que, sendo o A locatário, as não pode demandar, mas tão-somente à locadora e esta, à vendedora, e assim sucessivamente - vertical privity .
(O A. alude nos art.s 62.º e 63.º da p.i. à responsabilidade objectiva do produtor pelos danos causados por defeito dos produtos que põe em circulação, dizendo que o produto identificado é defeituoso, não oferecendo a segurança com que legitimamente se poderia contar. No entanto, não extrai disso consequências a nível de quaisquer danos por si sofridos por via dessa falta de segurança, apenas os fazendo decorrer da mencionada falta de qualidade).
Que dizer, no entanto, da 3.ª Ré?
Quanto a esta, o A. alegou que lhe solicitou, após ter sentido umas vibrações anormais no veículo, em 13.3.2001, uma vistoria ao mesmo. Foi-lhe dito, depois daquela realizada, que o veículo não tinha nada de errado e que se encontrava em perfeitas condições de segurança.
Em Lisboa o veículo imobilizou-se, pelo que foi transportado para a oficina da 3.ª Ré, onde deu entrada no dia 16.3.2001.
Nesse dia, o A. enviou um fax à 3.ª Ré, solicitando que o veículo não fosse objecto de reparação ou intervenção sem a sua presença, pedindo que o avisassem para o efeito.
No dia 19.3.2001 deslocou-se à oficina, sendo informado de que havia um problema na ponteira da direcção, que se encontrava partida.
No dia 20.3 recebeu um fax da 3.ª Ré, dando-lhe conhecimento de que após ter sido analisada a viatura se constatara que os danos haviam sido originados por uma pancada, sendo os custos da reparação a cargo do A.
Não confiando na actuação da 3.ª Ré (nem das demais), o A. dirigiu-se às instalações dela acompanhado de um técnico, para analisar a ponteira da direcção, mas deparou com o veículo desmontado sem sua autorização e a peça em causa mudada, tendo sido apresentada como sendo a primitiva uma idêntica que se encontrava na mala, mas incompleta, faltando-lhe uma parte.
O A. removeu o - veículo das instalações da 3.ª Ré para o entregar noutro concessionário, desta feita em Vigo.
Enumera o A. os seguintes danos, que atribui ao defeito de fabrico (art. 35.º e ss. da p.i.):
- liquidação da factura relativa a relatório elaborado pelo ISQ - 76.050$00;
- pagamento da factura apresentada pela 3.ª Ré, respeitante a substituição, abusiva e indevida, da peça da ponteira da direcção - 17.784$00;
- pagamento de despesas de reboque do Porto a Vigo, local do concessionário da 1.ª Ré - 36.779$00;
- pagamento de factura apresentada pelo concessionário de Vigo, pela reparação integral dos danos provocados no veículo - 356.619$00;
- pagamento das facturas relativas à prorrogação do contrato de locação do veículo utilizado em substituição do Audi - 642.000$00;
- perdas de tempo que deixou de afectar à sua actividade profissional, com a inerente diminuição de proventos;
- danos não patrimoniais decorrentes da indisponibilidade da viatura.
Os pedidos formulados contra a 3.ª Ré são de condenação:
- No pagamento de 350.000$00 pela violação de obrigações a que, no âmbito do contrato de depósito, estava adstrita na qualidade de depositária;
- Na restituição do montante de 17.784$00, que lhe pagou pela substituição da peça da ponteira da direcção, em virtude do seu carácter abusivo e contrário à sua vontade.
(Em seguida pede a condenação das Rés [cremos que se refere, exclusivamente à 1.ª e 2.ª Ré, atenta a causa de pedir invocada] no pagamento dos danos causados quer pelos defeitos do produto, quer pela sua conduta ilícita por violação do n.º 1 do art. 5.º do Reg. CE 1475/95, em montantes que especifica).
Relativamente à, 3.ª Ré, a causa de pedir é, manifestamente, a celebração do invocado contrato de depósito e a violação da ordem de não mexer na viatura sem ser na presença do A.
Parece, pois, que o A. é parte legítima, por não estar em causa a qualidade do produto no que concerne esta Ré, mas a celebração entre o A. e a mesma de um contrato que ele qualifica como sendo de depósito.
Nesta parte, merece, por conseguinte, provimento o agravo.
Face ao exposto, confirma-se o despacho na parte em que julgou o A. parte ilegítima para demandar as duas primeiras Rés, mas concede-se parcial provimento ao agravo e determina-se a reformulação do saneador no que à 3.ª Ré se refere, devendo o A., quanto à mesma, ser considerado parte legítima, prosseguindo, nessa conformidade, os autos.
Custas pelo A. na proporção de 2/3.
Porto, 17 de Junho de 2004
Trajano Seabra Teles de Menezes e Melo
Mário Manuel Baptista Fernandes
Fernando Baptista Oliveira